Tenho por hábito responder aos leitores que me escrevem. Exceto quando o volume de mensagens rebenta com a minha caixa email e torna impossível a resposta individualizada.
Vamos começar a responder: »»» Aconteceu nas duas últimas semanas. Primeiro, com o texto "Só faltam os palestinos" (Pensata, 13/12/2010, vide por favor: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/844615-so-faltam-os-palestinos.shtml). Depois, com "Marchando com Barbra Streisand", publicado na minha coluna da Ilustrada (21/12/2010). Como não quero começar um novo ano com assuntos velhos, respondo aqui e agora.
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Começo com o conflito palestino-israelense para reafirmar o óbvio: a existência de dois Estados --um palestino, outro israelense-- converteu-se no mantra salvífico da "comunidade internacional". Mas essa "solução", na história do conflito, tem sido sucessivamente recusada pelos árabes palestinos --desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
Alguns leitores, para não dizer a maioria, contestaram essa versão. E contra-argumentaram: por que motivo os palestinos deveriam partilhar uma terra que era deles com os invasores sionistas?
Existem vários erros nesse raciocínio. Em primeiro lugar, a "Palestina" não pertencia aos "palestinos". Desde logo porque não existia "Palestina" propriamente dita. Nem "palestinos".
O que existia era um território otomano dividido em várias unidades administrativas (os "vilayets"). A chamada "Palestina" começou por pertencer ao "vilayet" da Síria; e, depois da invasão egípcia em 1830, foi um território partilhado pelos "vilayets" de Beirute e de Jerusalém todos eles sob autoridade otomana.
Com a Primeira Guerra Mundial, e a consequente desagregação do Império Otomano, a questão fundamental passava por saber o que fazer com esses territórios que, durante quatro séculos, estiveram sob dominação de Istambul. Territórios onde existiam árabes, sem dúvida; mas onde se encontravam igualmente curdos, persas, turcos, gregos, judeus --uma salada infinita de povos e culturas.
A decisão de procurar uma divisão equitativa do ex-território otomano entre árabes e judeus teve em conta a realidade demográfica já existente "in loco".
É por isso que falar de "invasão sionista" constitui um segundo erro. A partir de 1881, e após a morte do czar Alexandre 2º, intensificaram-se as perseguições à população judaica do Império Russo. E é no seguimento dos "pogroms" que se iniciam as vagas migratórias de judeus para todo o mundo. Para a Europa, para os Estados Unidos, para a América Latina. E, naturalmente, para a Palestina otomana, onde sempre existiu presença judaica ao longo dos séculos.
O "sionismo", que é anterior ao "Caso Dreyfus" mas que ganhou com ele um rosto (Theodor Herzl) e um programa ("O Estado Judaico" e a Declaração de Basel), limitou-se apenas a organizar e a aprofundar um movimento espontâneo: a fuga dos judeus da Europa para a Palestina otomana, onde a compra e o trabalho da terra, bem como a fundação de comunidades agrícolas e mesmos de novas cidades (Tel Aviv, 1909), sempre ocorreu num contexto administrativo otomano.
Quando este contexto desapareceu, no seguimento da Guerra de 1914-1918, a "comunidade internacional" limitou-se a procurar uma solução "de jure" para o que já era uma realidade "de facto".
E hoje? Que esperanças para o conflito?
Pessoalmente, poucas. Desde logo porque o conflito palestino-israelense deixou de ser, apenas, um conflito entre árabes e judeus. É também um conflito entre os próprios árabes (entre o Hamas e a Autoridade Palestina), sem falar da influência nociva do Irã, que financia e treina o Hamas (em Gaza) e o Hezbollah (no sul do Líbano).
O conflito palestino-israelense é, sobretudo, um conflito iraniano-israelense. Precisamente por isso, não vejo saída possível para ele.
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Por último, os gays nas Forças Armadas e o derrube da lei "don't ask, don't tell" (não pergunte, não diga) pelo Senado norte-americano. Os chefes dos Marines (Gen. James Amos), do Exército (Gen. George Casey) e da Força Aérea (Gen. Norton Schwartz) opuseram-se no Senado ao derrube da lei?
Os leitores opõem-se à oposição dos chefes. A instituição militar não pode e não deve discriminar gays que pretendam integrar-se nas Forças Armadas. A ideia, impoluta, é que o "preconceito" tem de ser combatido em qualquer contexto.
Com a devida vênia, discordo. Os "preconceitos" podem ferir a nossa sensibilidade igualitária --e, repito, nunca entendi o preconceito homofóbico: a orientação sexual de cada um é tão moralmente irrelevante como a cor da pele ou a altura do sujeito.
Mas existem determinadas instituições onde o derrube do "preconceito" pode ser pior do que a sua manutenção. As Forças Armadas são um bom exemplo: ao lidarem com situações de vida ou morte, onde se joga a sobrevivência dos soldados (e, no limite, dos civis que eles protegem), não me repugna permitir uma "excepção" se esse for o entendimento dos próprios homens que lutam no terreno. Deles e apenas deles.
Isso não torna o "preconceito" mais nobre ou recomendável; apenas o torna tolerável em situações intoleráveis.
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Resta-me desejar ao leitor que 2011 seja um bom ano --e que as nossas concórdias e discórdias continuem vivas.
João Pereira Coutinho, 34 anos, é colunista da Folha. Reuniu os seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha.com.